Lacan, Freud e Hyppolite
Às vezes, viajar não é apenas percorrer distâncias, mas atravessar palavras, silêncios e memórias.
Entre o que se diz e o que se cala, surge um espaço onde nos encontramos com o outro — e com nós mesmos. É nesse intervalo que a escuta se torna arte e o poder, inesperadamente, transforma-se em cuidado.
No fundo, o que está em jogo é uma pergunta que ultrapassa o campo da psicanálise:
o que significa exercer poder sobre outro ser humano?
E, mais ainda:
é possível escutar sem dominar?
O poder de compreender para dominar
Lacan observa que Freud teria substituído o poder direto sobre o outro — como o hipnotismo de Charcot — por um poder indireto: o da ciência sobre a natureza.
Essa passagem do domínio físico ao domínio intelectual revela um movimento que o próprio Freud nomearia em outros contextos: o da intelectualização, o impulso de compreender para poder controlar.
Freud, lembra Lacan, não esteve imune a uma certa forma de autoritarismo.
Mas o importante aqui não é julgá-lo — e sim compreender o quanto esse traço também está ligado ao gesto de fundar um saber, de se colocar diante do desconhecido com o desejo de explicá-lo.
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Imagem de Welcome to All ! ツ por Pixabay |
A resistência como descoberta e como ética
O interlocutor Z* sugere que Freud descobriu a resistência não apenas como conceito clínico, mas como experiência pessoal.
Ter “sentido vivamente a resistência” teria sido o que lhe permitiu reconhecê-la — e, sobretudo, não tratá-la como um obstáculo, mas como via de acesso à verdade do sujeito.
Lacan inverte a perspectiva: talvez o verdadeiro avanço de Freud não tenha sido vencer a resistência, mas saber escutá-la.
A inteligência do analista, diz Lacan, é justamente a de suportar não saber — de permitir que o sujeito tropece em suas próprias palavras.
Porque é nesse tropeço que a verdade pode aparecer.
Da dominação ao reconhecimento
Hyppolite acompanha Lacan em parte: tanto Charcot quanto Freud lidam com o poder, mas de maneiras radicalmente diferentes.
Charcot domina o corpo do sujeito; Freud reconhece a resistência e faz dela um ponto de trabalho.
Se Charcot transforma o paciente em objeto, Freud o reconduz à condição de sujeito.
O poder, então, muda de natureza: não se trata mais de controlar, mas de sustentar.
Freud inaugura uma forma de poder que se exerce pela palavra — um poder simbólico, que se apoia na escuta e na ética, não na força.
Ler Freud com prudência
Lacan adverte: é preciso cuidado ao interpretar Freud.
Reduzi-lo ao “homem autoritário” ou ao “gênio neurótico” é cair na armadilha de uma psicologização simplista.
As leituras biográficas, como a de Ernest Jones, tendem a apagar o que há de mais novo na psicanálise — o gesto de transformar a resistência em método, o não saber em instrumento.
Freud não é apenas um homem de poder.
É também aquele que abriu espaço para um tipo de poder que renuncia à dominação, e que, por isso mesmo, revela o sujeito na sua liberdade.
Um poder que escuta
Entre as lições desse trecho do Seminário 1, talvez a mais atual seja esta:
o poder que escuta é mais transformador do que o poder que impõe.
Na psicanálise, isso se traduz na ética da resistência.
Mas fora do consultório — nas relações, na educação, na política — também se poderia dizer que escutar o outro sem apressar-se em entendê-lo é o primeiro gesto de um poder verdadeiramente humano.
Entre histórias e viagens, a psicanálise nos lembra: escutar é sempre um modo de cuidar — e, às vezes, o mais difícil e generoso de todos.
Fonte de pesquisa: Jacques Lacan - O Seminário -Livro 1- Os escritos técnicos de Freud - Ed. Jorge Zahar - Págs.37,38,39.